segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Agricultura familiar garante 70% da mesa do brasileiro, mas está longe do agro 4.0



 O agronegócio é um dos setores mais pujantes da economia brasileira. É o único, pelo lado da oferta, a crescer mesmo durante a pandemia. O país acumula superavit na balança comercial agro de mais de US$ 60 bilhões este ano, graças à produtividade crescente, impulsionada pelas aplicações tecnológicas que invadiram as grandes propriedades rurais. No entanto, a agricultura familiar, que garante 70% dos alimentos que chegam à mesa dos brasileiros, continua distante do agrotech 4.0, excluída por conta da baixíssima escolaridade, da falta de conectividade e do acesso limitado ao crédito. Isso porque, apenas com investimento em conectividade e inclusão digital, o país poderia dar um salto de até R$ 78 bilhões no valor bruto da produção agrícola.

Em plena pandemia do novo coronavírus, as safras de soja, arroz e café asseguraram crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) agropecuário de 0,4%, no segundo trimestre de 2020, ante os três primeiros meses do ano, e de 1,2% na comparação com igual período de 2019. De janeiro a agosto, a balança comercial brasileira do setor registrou superavit recorde de US$ 61,5 bilhões. As exportações somaram, em receita, US$ 69,6 bilhões no acumulado dos oito primeiros meses, uma alta de 8,3% em relação ao mesmo período de 2019, e totalizaram 152,4 milhões de toneladas em volume, aumento de 15,8%, segundo a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA).

Enquanto isso, nas pequenas propriedades, segundo o ex-secretário de Agricultura e Desenvolvimento Rural do Distrito Federal Argileu Martins da Silva, mais de 2 milhões de famílias agricultoras, que representam 42% dos estabelecimentos rurais que comercializam seus produtos, têm valor de produção de até R$ 5 mil por ano, ou seja, renda de pouco mais de R$ 400 por mês. “Esse universo de produtores está na pobreza ou abaixo dessa linha”, afirma Argileu.

Os dados do Censo Agro 2017, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), também apontam baixíssima escolaridade na agricultura familiar: 21% dos produtores brasileiros não sabem ler nem escrever; 15%, nunca frequentaram a escola; e 43% têm até o ensino fundamental. Além disso, se a tecnologia é um fator preponderante para aumentar a produtividade, a conectividade e o uso de ferramentas digitais definem a inclusão ou a exclusão de produtores rurais no processo.

Contudo, diz Argileu, dos 5 milhões de estabelecimentos rurais, menos de 28% têm conexão à internet e, desses, apenas 46% têm banda larga. “O restante é internet móvel, que os produtores acessam só nos centros urbanos, portanto, sem poder usar como uma ferramenta na produção”, alerta. Segundo ele, as políticas públicas voltadas à agricultura familiar vêm perdendo força. “No universo de 5.073.324 de estabelecimentos rurais, em torno de 60% — ou pouco mais de 3 milhões — comercializam a produção. Há, pelo menos, 2 milhões que não vendem nada”, revela.

Dos 3 milhões que comercializam, para 45%, a renda em outras atividades é maior do que o rendimento da agropecuária da propriedade. “O agricultor familiar vende seu serviço em alguns dias da semana, na colheita de outros produtores, e, com isso, obtém mais recursos do que na sua produção. Isso, aliado ao grande número de estabelecimentos sem venda, mostra o potencial de crescimento da agricultura familiar”, avalia. “Quando se analisa os grandes números, 10% dos agricultores são responsáveis por mais de 80% do valor bruto da produção. Isso sugere que os demais não têm importância econômica”, ressalta Argileu.

O fato é que 70% da soja são exportados e, dos 3 milhões de estabelecimentos que comercializam a produção, somente 245 mil são produtores. “Eles são responsáveis pelo superavit na balança, mas os produtores estratégicos para o abastecimento do país, com frutas e hortaliças, estão na agricultura familiar. Porque, na commodity, a renda por hectare é pequena, e é preciso plantar grandes áreas”, explica. “Ou seja, se a produção na agricultura familiar fosse incentivada, com políticas públicas e acesso ao crédito, o país teria mais segurança alimentar”, estima.

Rochinski assinala que o próprio Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) só atinge determinado patamar da categoria. “Esse universo de 2 milhões nunca foi atingido, porque o foco das políticas é crédito rural. Mas, como dar crédito se grande parte não tem nem cadastro em banco?”


Visibilidade

Assim como o Brasil identificou invisíveis entre os trabalhadores informais, durante a pandemia, há despercebidos, também, na agricultura familiar, diz o coordenador da Contraf Brasil. “Há produtores rurais que nem sempre conseguem ser visibilizados. São os que vendem na própria comunidade, entre vizinhos, em feiras. Embora não percebidos pelo Estado, têm impacto nas condições de vida das populações locais”, ressalta. “É preciso política de fomento, com crédito não bancarizado. Se isso existisse, talvez não estivéssemos passando por essa crise de elevação dos preços dos alimentos”, cogita.

“O agricultor familiar vende seu serviço em alguns dias da semana, na colheita de outros produtores, e, com isso, obtém mais recursos do que na sua produção. Isso, aliado ao grande número de estabelecimentos sem venda, mostra o potencial de crescimento da agricultura familiar”


Produção no quintal de casa

A produtora rural Gisely Cristina Coité, 37 anos, passou a cultivar alimentos orgânicos no quintal de casa, em 2013, para consumo próprio e da filha, que era pequena. Na época, conta, a oferta de orgânicos era muito menor e ela precisava visitar vários locais até encontrar produtos de qualidade. “A gente começou a plantar no quintal da nossa casa e foi dando muito certo. Não conseguíamos (produzir) tudo porque ainda estava aprendendo, mas o que conseguíamos era bom, livre de agrotóxicos. E podíamos fornecer com segurança para a nossa filha e, também, consumir.”

Com a experiência, Gisely conta que ela e o marido sentiram vontade de continuar produzindo, com maior variedade de alimentos. Na época, a família morava na Região Administrativa do Gama. Para aumentar a produção, o casal alugou uma chácara vizinha. “Temos alface, cebolinha, mandioca, batata-doce, cenoura, mamão, banana, laranja, limão, tangerina e plantas alimentícias não convencionais, também. A gente procura produzir as hortaliças, aqui, no meio das árvores do cerrado, então, a gente faz a conservação das plantas nativas e vai plantando também”, conta. “Em paralelo, começamos a comunidade CSA da Florestta, com cinco famílias, à época, querendo financiar a produção dos seus alimentos. Foi isso que deu o fôlego financeiro para produzirmos esses orgânicos e fornecer às famílias”, diz.

O problema principal, segundo ela, foi a assistência técnica. O ramo de alimentos orgânicos era escasso em informações, comenta. “Fomos buscar estudo por conta própria, fazer cursos, e fomos testando. Hoje, já existe mais assistência técnica. Tem o Senar-DF (Serviço Nacional de Aprendizagem Rural Administração Regional Distrito Federal), tem cursos on-line gratuitos. A Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater-DF) também tem se especializado nessa ajuda e, agora, é referência para o resto do país.”

Em uma chácara própria, em Luziânia (GO), há dois anos e meio, Gisely explica que o acesso a linhas de crédito no ramo dos orgânicos é outra dificuldade. “A gente nunca conseguiu, parece que é um tabu. Infelizmente, a Emater de Luziânia nos informa que só tem financiamento para gado (leite) ou produção de soja. E a gente não tem acesso ao crédito rural. Acredito que esse seja o principal problema. Agora, mesmo, precisamos comprar um trator, e eu não tenho dinheiro”, lamenta.


Desafios

A produtora rural faz parte da coordenação do Sindicato dos Produtores Orgânicos do DF (Sindiorgânicos/OPAC-Cerrado), que auxilia os agricultores no processo de certificação da produção orgânica, de forma voluntária. Segundo ela, os problemas enfrentados pelos produtores atendidos são os mesmos que os enfrentados por ela. “Falta informação, assistência técnica de qualidade, crédito. E a gente não tem muito acesso à tecnologia, máquinas para nos auxiliar no manejo do produto orgânico, porque é tudo manual. A gente tem custo alto com mão de obra, porque precisa fazer muitos serviços manuais.”

Gisely pede uma ajuda mais incisiva aos produtores. “Hoje, o DF obriga que parte da aquisição de alimentos seja de produtores orgânicos. Nesse sentido, o governo pode nos ajudar no fornecimento de crédito focado nesse setor, por exemplo.”


Apostando no digital

A agricultura familiar é carente de políticas públicas específicas, sobretudo, no que diz respeito à inclusão digital para aproveitar os benefícios que a tecnologia garante ao setor, mas tanto o Executivo quanto o Legislativo estão cientes dessa limitação e buscam soluções. O diretor de Inovação do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), Cleber Soares, garante que a pasta está preocupada com a necessidade de transformação digital no campo. “O maior problema, para isso, está associado à ausência de conectividade. Pouco mais de 25% da área rural agrícola possuem conexão”, diz. Segundo ele, levar internet e assistência aos pequenos produtores pode elevar o valor bruto da produção em até R$ 78 bilhões.

Apesar de faltar conectividade em toda zona rural do o país, Soares afirma que um mapeamento apontou como regiões mais críticas o Norte e o Nordeste. “Temos que prover conexão utilizando telefonia móvel 2G, 3G e 4G. Para soluções rápidas, até 2G funciona”, ressalta. O diretor destaca que é necessário investimento em infraestrutura. “Para cobrir próximo de 50% do território agrícola, é necessário instalar 4,4 mil torres e antenas (equipamento das estações rádio-base). No segundo cenário, com 15,2 mil estruturas, a cobertura sobe para 89% do território agrícola.”

Soares destaca que o Ministério das Comunicações está identificando as áreas mais vulneráveis e de difícil alcance para usar o satélite geoestacionário. Em outra parceria, com o Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), por meio da Rede Nacional de Pesquisa, que cuida de infraestrutura de fibra ótica, o governo está mapeando até onde vai a rede, para implementar a última milha (trecho final). “E, a partir daí, irradiar para as propriedades rurais.”

O impacto de levar conectividade a 50% do território será de R$ 46 bilhões no valor bruto da produção, diz Soares. “No cenário de cobertura de quase 90%, o incremento é de R$ 78 bilhões, valores que consideram como base o Censo de 2017 e que, portanto, já são maiores”, destaca. Porém, há um outro desafio, acrescenta. “Pela baixa escolaridade, temos que promover educação digital. Para essa camada, a abordagem pedagógica precisa ser diferenciada. Com metodologias e soluções de fácil entendimento”, diz.


“Fuga da roça”

No Parlamento, a discussão passa pelo projeto de lei nº 172/2020, que dispõe sobre finalidade, destinação dos recursos, administração e objetivos do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust). O deputado Zé Silva (Solidariedade-MG) explica que o objetivo é usar os mais de R$ 30 bilhões do fundo para levar internet ao campo. “A conectividade permite segurança no campo, geolocalização, georreferenciamento, comunicação entre vizinhos, irrigação automatizada, ajuda a vender a produção e receber orientação técnica”, elenca.

O deputado apresentou um substitutivo aos 26 projetos existentes na Câmara com medidas de apoio à agricultura familiar. Ele lembra que a declaração de aptidão ao crédito rural, hoje, é excludente e concentradora. “Enquanto o crédito do plano safra aumentou 7%, de 2005 para cá, os produtores aptos caíram de 5 milhões, naquele ano, para 2,5 milhões, no ano passado”, indica.

O deputado Vilson da Fetaemg (PSB-MG) defende uma política de preço mínimo para agricultura familiar. “(Os pequenos produtores) São responsáveis pela produção de 70% dos alimentos. São eles que colocam comida na mesa dos brasileiros, mas não têm condições de competir no mercado, que têm a figura dos grandes atravessadores. Isso fez o povo sair da roça.” (SK) 


Por: Correio Braziliense 

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