segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Pescadoras do Sertão cearense se reinventam diante da estiagem

O filósofo alemão Friedrich Nietzsche, certa vez sugeriu não existir verdades absolutas. No Sertão cearense, essa frase sai do campo do pensamento e invade o universo dos fatos. É verdade que a quadra chuvosa deste ano foi a terceira melhor das últimas duas décadas no Ceará, conforme dados da Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos (Funceme). Assim como também é verídico afirmar que milhares de sertanejos não viram cair, sobre suas cabeças, tamanha chuva.
Eles carecem de água há, pelo menos, sete anos. E diante desta míngua de algo tão precioso eles se reinventam. Aliás, reinventar-se é uma característica inerente a este povo - talvez até por imposição dos caprichos naturais, como ocorrera neste ano, com bons volumes pluviométricos em algumas regiões e cenário de quase escassez em outras.
Nos sertões de Crateús e Inhamuns, um grupo de pescadoras de 12 municípios representa essa mudança frente à estiagem que é considerada, naquela localidade, a pior dos últimos 50 anos. São 401 mulheres que aprenderam a conviver com a seca e foram além.
Conseguiram ampliar a área de atuação por meio do projeto "Pescadoras e Pescadores: Construindo o Bem Viver", realizado pela Cáritas Diocesana de Crateús, Conselho Pastoral dos Pescadores Regional Ceará e a organização italiana CISV, cofinanciado pela União Europeia e Conferenza Episcopale Italiana. O projeto assiste ainda 431 homens.
Por intermédio dessas organizações, essas mulheres adquirem novos conhecimentos para a produção de bens. Além do reforço financeiro alcançado com a venda dos produtos, elas conquistam algo cujo valor não se pode mensurar: o resgate da autoestima.
"Ainda encontramos bastantes dificuldades e preconceitos em relação à nossa profissão. Não somos respeitadas como deveríamos, mas, graças ao projeto, hoje, nós, pescadoras, somos mais unidas e estamos conquistando nossos direitos", pontua Joelma Ferreira, pescadora da cidade de Independência. Ela acrescenta que por meio das atividades em grupo, houve fortalecimento "da autoestima e do nosso autoconhecimento como pescadoras".

APRENDER E ENSINAR

Um dos modelos de atuação da empreitada, iniciada em 2017, é a troca de conhecimento entre a comunidade pesqueira. O aprendizado acontece de forma coletiva, do mesmo modo com que é disseminado. "Tudo aqui é passado para frente", garante a pescadora da cidade de Aiuaba, Jozileide de Sousa Pereira. "Queremos que muitas outras mulheres também conquistem a independência", ressalta.
Durante as atividades do projeto, elas aprendem a produzir trufas, pão caseiro, sabonete artesanal, dentre outros itens que podem ajudá-las a adotar um novo estilo de vida e enfrentar a realidade marcada pela falta de água e peixe.
"O inverno neste ano não foi bom. Foi mais um ano difícil", alerta Jozileide, referindo-se à quadra chuvosa, período entre os meses de fevereiro a maio nos quais a chuva é esperada. Com a pouca água acumulada nos açudes, o pescado naturalmente se torna limitado. É neste momento que o "Construindo o Bem Viver", mais uma vez, entra em ação. As mulheres aprendem a agregar valor ao peixe. "Hoje, preparo outros produtos derivados dele, como a linguiça de peixe, bolinhas e hambúrgueres. Também estou passando meus conhecimentos para outras mulheres, assim, elas também poderão melhorar a renda e quebrar os preconceitos que a sociedade ainda tem sobre o papel da mulher pescadora", completou Joelma.

REDESCOBERTA

O olhar crítico da pescadora sobre o contexto social é analisado positivamente pela cientista social Aldenizia Maia. Ela observa que "aprender a fazer trufas, detergentes, ou outros itens pode parecer algo pequeno, mas serve para as mulheres perceberem que, sozinhas, podem movimentar dinheiro, e no universo pesqueiro dominado por homens, o aumento do poder econômico é simbolicamente muito forte".
A pescadora do município de Novo Oriente, Maria Aparecida Ferreira Costa, relata que após ter ingressado no projeto "há mais de um ano", passou a ser vista "com outro olhar". "Não sabia qual era meu lugar ou meu papel. Na verdade, a gente não era nem observada. Hoje, é diferente, sabemos nossos direitos, nos sentimos bem por poder contribuir financeiramente em casa e, além disso, agora conseguimos fazer outras coisas que não somente pescar. Pelo menos, se a seca permanecer, a gente já não morre de fome", comemora Aparecida.

Diário do Nordeste

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