sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

Tragédia do Gran Circus Norte-Americano: maior incêndio do Brasil completa 60 anos

 


Há exatamente 60 anos, o Brasil registrou o incêndio com maior número de vítimas da história do País. A tragédia no Gran Circus Norte-Americano provocou a morte de mais de 500 pessoas, a maioria criança, durante uma tarde quente em Niterói, Rio de Janeiro, no dia 17 de dezembro de 1961.  

O domingo que deveria ser de lazer e encontro entre gerações, adultos e crianças, foi transformado em desastre pelas chamas do fogo durante a vingança de um ex-funcionário da arena.

O drama causou comoção mundial, e, na época, foi classificado como a maior tragédia sob lonas de circos do mundo, chegando a receber ajuda dos Estados Unidos e até mesmo do Vaticano, através do Papa João XXIII, conforme narra o pesquisador da Universidade Federal Fluminense (UFF), Paulo Knauss, em artigo publicado na Revista Brasileira de História.


O QUE ACONTECEU NO GRAN CIRCUS NORTE-AMERICANO?

Autoproclamado o maior circo da América Latina, o empreendimento de propriedade de Danilo Stevanovich anunciava uma novidade naquele fim semana: a nova lona de nylon de cerca de seis toneladas.

Naquela tarde de 17 de dezembro, cerca de 3 mil pessoas se reuniram na plateia para prestigiar o terceiro dia de espetáculos. 

Por volta das 15h45, momento em que os trapezistas se preparavam para executar o ponto alto da apresentação, o salto tríplice, o incêndio começou, conforme o jornal Tribuna da Imprensa publicou na época. Uma das trapezistas relatou à publicação que o fogo começou na arquibancada, no lado esquerdo do túnel de saída. 

A lona, que deveria ser de nylon, na verdade, havia sido embebida por parafina — material altamente inflamável —, e foi rapidamente consumida pelas chamas. Os pedaços dos tecidos flamejantes derreteram sobre o público, que se amontoava para escapar do cenário escaldante. 

Enquanto o cenário infernal se desenrolava no palco principal, uma elefanta do empreendimento, chamada Semba, que se preparava para entrar no picadeiro, ficou assustada com o incêndio e disparou correndo pela multidão. O animal causou pisoteamento de muitos, mas também salvou alguns ao fazer um buraco na lona, usado como saída de emergência por quem estava próximo. 

"Gritos lancinantes ouviam-se por toda parte. Depois, o silêncio e a morte envolta numa montanha de cinzas", descreveu a revista O Cruzeiro sobre a tragédia.

Em 20 minutos, o circo foi completamente consumido pelo fogo. Centenas de corpos carbonizados se amontoaram na porta principal e outras centenas ficaram espalhados pelas cadeiras e embaixo das arquibancadas. 


SOCORRO ÀS VÍTIMAS

O socorro chegou quase imediatamente, segundo a imprensa da época, já que o quartel do Corpo de Bombeiros ficava próximo ao local. Os agentes, com ajuda da população, enrolaram os corpos em chamas com cobertores. 

Antes mesmo de chegarem as ambulâncias, muitos sobreviventes foram conduzidos para atendimento médico em carros particulares. Enquanto isso, as vítimas que conseguiram escapar ilesas tentavam encontrar familiares e amigos em meio aos escombros. 

"Centenas de sapatos de homens, mulheres e crianças espalhados pelo picadeiro, atestavam toda a dramaticidade da tragédia que atingira o Circo Norte-Americano. No meio deles, uma mamadeira que não era mais usada pelo seu dono. A maior parte das vítimas era constituída de menores que tinha ido em busca de alegria e diversão. O futuro, porém, lhes reserva um cruel destino: a morte", descreveu a O Cruzeiro.


503 pessoas morreram na tragédia no Gran Circus Norte-Americano

Oficialmente, 503 indivíduos faleceram devido ao incêndio. No entanto, o número é contestado: alguns acreditam que a quantidade de vítima pode ser, pelo menos, o dobro do informado pelas autoridades da época. 


AVANÇO DA MEDICINA

Além dos mortos, muitas vítimas tiveram partes dos corpos queimadas e precisaram de atendimento médico. Devido ao elevado número de pacientes, voluntários e médicos de todo o País e do mundo se dirigiram ao Rio de Janeiro para auxiliar nos tratamentos. 

Argentina e Estados Unidos foram algumas das nações que enviaram suprimentos médicos e alguns cirurgiões para ajudar no socorro às vítimas. 

As centenas de mortes ainda foram lembradas em uma missa do Papa João XXIII, que doou CR$ 500 milhões (equivalente a R$ 181.818) para o atendimento às vítimas.

Penitenciários com "bom comportamento" foram enviados pelo governo do Rio para ajudar na abertura de sepulturas no cemitério de Maruí. Enterros sem registro, desaparecimentos e tratamento em outras cidades estão entre os fatores que enevoaram a contagem oficial de mortos pelo incêndio.

Entre os profissionais que atenderam as vítimas da tragédia, o cirurgião plástico Ivo Pitanguy se destacou. Após uma temporada no exterior, o médico foi de barco do Rio de Janeiro a Niterói.

A atuação de Pitanguy desenvolveu técnicas durante os procedimentos que mudaram a medicina do País, como o uso de pele liofilizada (desidratada) no tratamento de queimaduras — insumo doado pelos EUA.  


DEQUINHA E O INCÊNDIO CRIMINOSO

Com cerca de 60 artistas, 20 empregados e 150 animais, o circo chegou à cidade de Niterói uma semana antes da estreia e escolheu a praça Expedicionário, na avenida Feliciano Sodré, no Centro, para se instalar. 

A montagem da estrutura demandava tempo e mão-de-obra. Cerca de 50 trabalhadores avulsos foram contratados para colocar o Norte-Americano de pé. Entre os temporários estava Adílson Marcelino Alves, conhecido por Dequinha, que possuía passagem por furto e supostamente tinha algum transtorno mental.

Demitido após trabalhar dois dias, ele foi barrado na entrada do picadeiro por tentar entrar sem pagar. Descontente com as atitudes do ex-empregador, o antigo funcionário teria decidido atear fogo na atração com a ajuda de dois amigos: José dos Santos, o Pardal, e Walter Rosa dos Santos, o Bigode. Os três foram capturados e presos antes do fim de dezembro. 

O governador do Rio de Janeiro na época, Celso Peçanha, protagonizou um interrogatório dos suspeitos durante a apresentação deles à imprensa. Na ocasião, assim como já o efetuara na delegacia, Dequinha confessou o crime. Já Bigode negou o envolvimento e se declarou inocente.  

A hipótese de acidente foi levantada por peritos, que declaram à imprensa que "o circo não tinha condições de funcionar" devido às irregulares presentes no local. No entanto, tanto o Corpo de Bombeiros quanto o diretor do Serviço de Censura do Estado do Rio sustentaram que o estabelecimento estava em boas condições. 

A Polícia optou por sustentar a tese de incêndio criminoso e evitou atribuir alguma culpa ao dono do local, que afirmava que "só mesmo um crime” poderia justificar a tragédia. 

Em outubro de 1962, Dequinha foi condenado a 16 anos de prisão, além de seis anos de internação em um manicômio judiciário. Bigode também foi sentenciado a 16 anos, mas com um ano em colônia agrícola. Já Pardal recebeu a pena de 14 anos de prisão, sendo dois anos em colônia agrícola.

Após mais de uma década encarcerado, Dequinha fugiu, mas foi assassinado menos de um mês depois. Ele foi encontrado com 13 tiros no alto do morro Boa Vista, em Niterói, próximo a torres de transmissão. A Polícia não conseguiu achar o autor do homicídio. 

Após cumprirem pena e serem soltos, Bigode e Pardal desapareceram, segundo o jornalista Mauro Ventura, autor do livro "O Espetáculo Mais Triste da Terra — O incêndio do Gran Circo Norte-Americano".


RELATO DE UMA SOBREVIVENTE

As vítimas que conseguiram sobreviver a tragédia não receberam indenização ou assistência pela tragédia. 

Aos 76 anos, Lenir Ferreira de Queiroz Siqueira relatou ao jornal Estado de Minas, em 2013, que passou por dezenas de cirurgias, transplante de pele vinda da Argentina e nove meses de internação para se recuperar do desastre. Ela perdeu o marido e os dois filhos naquele 17 de dezembro. 

Para recomeçar após o acontecido e conseguir seguir com a dor imensurável, ela disse que se apegou à fé."Decidi acreditar que são os desígnios de Deus e passei a viver para os meus sobrinhos, meus irmãos”, declarou à publicação.

Além do incêndio no Norte-Americano, Lenir Ferreira viveu mais um episódio com chamas em 2007, quando um apartamento vizinho ao seu pegou fogo e consumiu quase todos os objetos pessoais dela, incluindo a maioria das fotos de recordação da família. Apenas três retratos se salvaram. 

“De novo, tive a solidariedade das pessoas, que me ajudaram. Isso tem que ser valorizado. Prefiro me prender a isso, levo a vida com alegria, em vez de lamentar. A saudade é eterna. Mas temos que nos resignar”, disse ao jornal mineiro.


Fonte: Diario do Nordeste

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